Entrada

- Menina..- senti-me despertar quando senti uma mão pousar no meu braço e abanar-me ligeiramente. Abri os olhos de repente, desencostando a cabeça do vidro e olhei na direcção do som, vendo uma senhora olhar-me de olhos muito arregalados, provavelmente por causa da forma repentina como despertei.- não queria assustá-la.- ela desculpou-se, afastando a sua mão.- só queria dizer-lhe que já chegámos.- assenti, levantando-me sem dizer nada e como não trazia bagagem, limitei-me a sair do autocarro. 
- Credo, não sabias pelo menos agradecer? - dei um pequeno saltinho quando ouvi a sua voz, sem estar à espera e revirei os olhos, enfiando o carapuço do meu casaco.- não me revires os olhos.- daphne resmungou.- depois ainda dizem que eu é que sou mal educada.- cerrei o maxilar, controlando-me para não começar aos berros e continuei a andar, enfiando as mãos nos bolsos. Não fazia a mínima ideia para onde ir, mas tinha de procurar alguma coisa, nem que fosse um banco de jardim. Só precisava de dormir.- é que nem penses.- ela cruzou os braços, abanando a cabeça.- eu recuso-me a dormir ao frio.- o problema disto tudo, é que ela conseguia ouvir os meus pensamentos. Ignorei-a, apertando o casaco que trazia vestido contra o meu corpo e atravessei a rua.- estás a ouvir? - ela quase que gritou, levando-me a fechar os olhos com a dor que aquilo provocava.- eu não vou dormir na rua.
- Óptimo, sais da minha cabeça e arranjas um sítio para dormires.- falei finalmente.- pode ser que finalmente me deixes em paz.

-Meninas, vistam-se, está quase na hora - gritou Lynn das escadas. Eu estava o lado dela à espera que estivesse pronta para sair. Ela queria ir comprar umas coisas a uma loja para decorar melhor o espaço e claro, eu tinha que ir. Pelo menos livrava-me de meia hora de trabalho. - Vamos Henry - disse ela pegando na sua mala e esperando que eu lhe abrisse a porta. Assim que o fiz ela saiu e eu fui atrás depois de fechar a porta. - Vamos a pé, precisas de fazer exercício. 
-A sério? - Perguntei levantando as sobrancelhas enquanto abanava a cabeça. Quem estava a ficar mais gorda era ela e perguntava-me se não estaria grávida, não seria a primeira vez.
-A sério, vem - disse começando a ir na direcção da tal loja. Estava a ir atrás dela quando de repente parou. Olhei-a seguindo o seu olhar e abanei a cabeça.
-Não faças isso.  - pedi-lhe vendo-a olhar-me de seguida.
-Porque não? - perguntou com um sorriso indo na direcção da rapariga que parecia meio perdida.

- Vês? Se tivesses virado naquela rua podíamos ter batido à porta de alguma casa, aqui não há nada.- estava a andar à meia hora e durante esta meia hora Daph ainda não se tinha calado. Eu não sabia porque raio é que ela tinha aparecido, mas eu mal via a hora de ela desaparecer de vez. Mas por enquanto a única solução que me parecia mais possível era matar-me, mas não o ia fazer. Apesar de vontade não me faltar.- credo, que pensamentos mórbidos.- ela disse toda escandalizada e eu senti as minhas bochechas ferverem de tanta raiva que eu sentia.
- Podes calar-te? - eu tentei, mas acabei mesmo por gritar.- eu estou a tentar orientar-me.- disse olhando em volta e vi uma mulher vir na minha direcção. Arregalei os olhos, abanando a cabeça e comecei a andar mais depressa, eu não podia ser reconhecida.
- É que nem penses.- ela reclamou.- ela vem ajudar-nos.- não lhe liguei, continuando a andar.- pára.- se eu ao menos a pudesse calar durante um bocadinho, nem que fosse só um bocadinho.- eu disse para parares.- ela resmungou, fazendo-me parar de repente.

Vi a rapariga andar mais rápido ao se aperceber de nós e assenti com a cabeça. Sim, ela que corresse pela vida dela. Ninguém devia confiar na cara de anjo de Lynn, era tudo menos querida.
-Espera - disse ela para a rapariga começando a andar mais rápido. Ela sorriu quando a miúda parou fazendo fechar os olhos, ficando uns passos atrás enquanto ela dava a volta para ver a rapariga. - Olá - sorriu-lhe. - Precisas de ajuda?
-Ela está bem Lynn, vamos embora, está a ficar tarde - interrompi-a. Lynn olhou-me cheia de raiva, para depois voltar a olhar para ela.
-Não pareces bem.

Ainda não tinha percebido porque é que tinha parado, mas mesmo que quisesse começar de novo a andar já não dava, porque a mulher apareceu à minha frente do nada, fazendo-me esconder ainda mais a minha cara com o carapuço.
- Oh meu deus, olha quem é que está atrás dela! - levantei o olhar quando Daph guinchou e olhei para trás da mulher, vendo um rapaz atrás dela. Mordi a parte de dentro da bochecha e senti o meu corpo arrepiar-se. Tudo o que eu menos queria agora era pensar em rapazes.- mas que pedaço de mau caminho.- quase que a podia ver a abanar-se toda. Ela fazia isto com todos os rapazes que passavam por nós, era impossível. Abanei a cabeça quando me perguntou se precisava de ajuda e encolhi-me sobre o meu próprio corpo, rodeando-o depois com os meus braços, como que a abraçar-me.-diz-lhe que não tens onde ficar.- ela quase que me ordenou, fazendo-me revirar os olhos. Eu não queria parecer uma coitadinha.- com essa roupa e esse cabelo? acredita, já pareces.- cerrei o maxilar, fechando as mãos em punho e olhei para a mulher que me olhava com um sorriso que sinceramente, me metia nojo.- diz Rachel! - acho que também ela se começava a irritar, mas eu já não podia com ela. Premi os lábios um no outro, quando ela começou a tentar fazer-me falar e abanei a cabeça, desta vez ela não ia conseguir, já bastava ter parado por causa dela.- tu sabes que eu vou conseguir o que quero, tenho mais poder sobre ti do que tu própria.- ela murmurou e de repente uma dor aguda fez-se sentir na minha cabeça, fazendo-me soltar um gemido de dor e agarrar-me a ela.- podia ter sido de outra forma Rachelzinha, mas não me deste escolha.

Levantei uma sobrancelha quando a miúda ficou calada e dei um passo em frentei espreitando para ela, para a ver se estava bem. Lynn olhou-me de sobrolho levantado. - Eu acho que ela está prestes a desmaiar - disse-me como se fosse uma coisa simples e normal. Fui para o lado dela observando.
-Tu estás bem? - perguntei fazendo uma careta, mas ela não falou. Limitava-se a morder toda e a abanar a cabeça, mas nem sabia se era para mim ou não.
-Óptimo, é maluca - Lynn falava baixinho, apenas para mim, para depois me olhar - Leva-a, eu vou sozinha à loja.
-Eu não a vou levar contra a vontade dela - disse logo.
-Ela não está contra vontade, precisa de comer e de dormir.

A minha cabeça doía-me tanto que eu achava que ela ia explodir a qualquer momento. Pára, por favor, pára. Pedi, sabendo que ela me ouviria e apertei os meus cabelos, sentindo depois um corpo perto do meu. Assim que ouvi a voz de alguém, percebi que era o rapaz quem se tinha aproximado e de um momento para o outro, a dor parou. 
- Ele é ainda melhor visto de perto.- como é que ela podia estar tão normal? Eu sentia-me a morrer naquele momento.- não exageres, nem doeu assim tanto, e agora vê lá se lhe falas ou ele pensa que és ainda mais maluca.- cerrei o maxilar, respirando fundo e levantei a cabeça devagar, olhando-o meio escondida no meu carapuço.
- Eu estou bem.- disse ao fim de algum tempo, com a voz meio rouca.- podes ir com ela.- disse, apontando com o queixo para a mulher e comecei a andar, ou a tentar, porque até os meus pés estavam meio presos. 
- Credo Rachel, será que vou ter de fazer tudo? - ela resmungou e eu senti-me desequilibrar de repente, tendo de me agarrar a ele para me segurar.- vê lá se não abusas, ele vai ser meu.

Juntei as sobrancelhas enquanto a vi agarrar-se à cabeça e olhei para Lynn. Por um lado queria leva-la, assim podia dormir, mas pronto outro, se a levasse ela nunca mais saía.
- Leva-a Henry, não me faças leva-la eu. - disse Lynn assim que viu que eu estava hesitante. Cerrei o maxilar olhando para a miúda e nem foi preciso ser eu a agarra-la, porque ela agarrou-me a mim. - Viste, está fraca, leva-a. - Lynn virou costas começando a afastar-se.
-Anda cá - suspirei agarrando na miúda ao colo, levando-a para casa.

Agora já não sabia bem se estava assim por causa de Daphne ou por causa da fome e cansaço que sentia. Apesar de não querer estar agarrada a ele, tive de o fazer ou então caía redonda no chão.
- Tu já viste bem os abdominais dele?- ela voltou a falar.- se é assim vestido, imagina sem camisola.- eu juro que ia vomitar-lhe em cima, estava a sentir-me tão mal e ela estava a irritar-me tanto. Encolhi-me ainda mais quando pegou em mim ao colo e fechei os olhos, abanando a cabeça.
- Para onde é que vamos? - perguntei baixinho.
- Esperemos que seja para a cama dele.

Assim que entrei em casa fiquei indeciso se a levava para o andar de cima, ou ficava no rés do chão. Acabei por leva-la para o andar superior, era mais confortável para ela e Lynn levava sempre para lá as pessoas que encontrava no primeiro dia. Era no primeiro andar que ela morava. Luxuoso e confortável, completamente o oposto do andar de baixo, que era onde nós viviamos. Já tinha chegado a dormir no chão, porque desde que eu tinha chegado, já tinha ido muita gente embora, mas tinha entrado o dobro. Lynn era milionária à nossa custa, pelo menos podia fazer umas obras e alargar o espaço. Olhei para a rapariga quando a ouvi. - Para casa - murmurei. Agora ia ser a casa dela também. Podia tentar sair, mas não ia conseguir. Levei-a para o quarto de hóspedes e deitei-a tirando-lhe apenas as sapatilhas que tinha calçadas, colocando-lhe uma manta por cima.

- Vamos embora, eu também não gosto desta mulher.- finalmente ela me dava razão em alguma coisa. Revirei-lhe os olhos, permanecendo calada e estava prestes a ir-me embora de novo quando a mulher gritou. O meu coração disparou, fazendo-me abrir muito os olhos e quando me atrevi a olhá-la, a sua expressão furiosa fez com que as memórias me assombrassem de novo. Ele também gritava e quando o fazia, os olhos dele ferviam, tal como os dela naquele momento. 
- Eu não..- abanei a cabeça, sentindo o meu corpo começar a tremer e eu encolhi-me sobre ele, dando uns passos para trás até cair pelas escadas que davam acesso à porta, visto que esta ainda estava aberta. Fechei os olhos, soltando um gemido e continuei a abanar-me.- não grite.- pedi.- por favor, não grite.

Lynn fez uma careta levantando um sobrolho enquanto me olhava, quando viu a miúda começar a tremer por todos os lados. Eu apenas dei um passo na sua direcção e arregalei os olhos indo mesmo até ela mal a vi cair pelas escadas. Podiam ser poucas, mas tinha sido uma grande queda. - Ela não grita - disse agarrando-a ao colo e olhei para Lynn. - Deixa-a em paz. - murmurei entredentes indo até ao quarto de hóspedes, era melhor ela ficar lá.

Eu estava a tremer por todos os lados, conseguia senti-lo. Era como se o conseguisse ver ali, à minha frente, a gritar comigo, a berrar-me aos ouvidos. Eu não suportava que gritassem comigo, nunca tinha suportado. Nem quando era pequena, e tudo tinha piorado depois de passar dois anos naquele lugar. Ainda tinha as marcas, aliás, tinha mais do que marcas. Tinha lembranças. Lembrava-me de cada dia, de cada momento. Resumindo, lembrava-me de cada dor. Agarrei-me mais a qualquer coisa quando senti agarrarem em mim também e apesar de tudo, continuei a abanar-me e a pedir que parassem baixinho.
- Credo Rachel, tanto drama por causa de uns gritinhos? - apesar de tudo, continuava a ouvi-la.- uh, espera lá, isto pode ser bastante benéfico, isso, continua, estás a fazer alguma coisa de jeito pela primeira vez.- só quando a minha visão se focou e o meu estado de transe diminuiu um pouco é que eu percebi que quem me estava a agarrar era o rapaz e que me levava não sei para onde.
- Eu só queria ir embora.- disse num sussurro, sentindo o meu queixo tremer.